Eureka seven trata de
mechas.
Mas não como Gundam, onde os bichos são o foco da ação 100% do tempo.
Nem como Evangelion, onde os dramas pessoais afloram e até eclipsam as
máquinas. Nessa série, uma harmonia de estilos raramente alcançada foi
conseguida. A história começa numa cidade pacata em um mundo
aparentemente fictício, onde o protagonista, Renton, vive reclamando de
sua vida. "Isso aqui é muito chato" será sua frase mais ouvida e, com
certeza, arrancará gargalhadas dos menos sisudos. Ou seja, o anime te
desarma desde o primeiro momento. E isso é importante, pois o começo do
anime, excetuando o primeiro episódio, é responsável pelos poucos
defeitos da série.
Renton sonha em "surfar". Entretanto, no mundo de Eureka seven, "surfar"
é usar uma prancha para voar nas ondas Trappar. Trappar é uma espécie
de energia emanada por todo o planeta (similar ao "lifestream" de Final
Fantasy VII para quem já viu), e "sentir" essas ondas é uma habilidade
explorada para diversão e para a guerra. Um fenômeno raro gerado pelo
Trappar são as Coralians, entidades intituladas auto-conscientes e base
dos muitos mistérios explorados ao longo da obra. Logo ao fim desse
primeiro episódio, cai de bandeja na casa de Renton um LFO (Light
Finding Operation), o
mecha
desse mundo, e dentro dele está Eureka, perseguida por militares e
imediatamente eleita como a garota dos sonhos de Renton. É importante
abrir aqui um parêntese: ao contrário dos romances bobinhos e sem
embasamento de vários animes, aqui a coisa rola tão naturalmente desde o
primeiro momento que fica difícil não ser cativado pela relação
inocente e séria de Renton com Eureka. Sem firulas, definitivamente um
dos mais bem elaborados casais da história dos animes.
Bem, o LFO em questão é o Nirvash Type Zero, uma unidade primordial
escavada em ruínas antigas. Eureka é mantida sob a égide do Gekko State,
uma nação independente formada dentro de uma nave de última geração
comandada pelo herói revolucionário ídolo de 10 em cada 10 adolescentes
do mundo: Holland. O Gekko State conseguiu a simpatia de muitos através
de uma publicação, a "Ray=out", que contesta muito do que é dito pela
mídia mundial. Após algumas idas e vindas, Renton acaba se unindo ao
Gekko State e descobrindo que lá dentro precisará sobreviver, ao
contrário da realidade romanceada pela revista que os retrata como
aventureiros.
Entre perseguições militares, missões de resgate, fugas de casa, adoções
de famílias e muitas reviravoltas, descobrimos que Renton e o amor que
ele sente por Eureka terão um papel muito maior no desenrolar da
história do que se poderia imaginar. E é preciso frisar que muito da
qualidade de Eureka se deve ao grupo de personagens e suas relações.
Seriamente falando, não consigo me lembrar de um grupo tão carismático e
fora dos padrões estereotipados dos animes quanto este. Todos os
membros do Gekko State são cidadãos do mundo, uma miscelânea de raças,
cores, credos e personalidades como nunca se viu. Tem até um que é a
cara do Che Guevara (apesar de menos duro que o real). Entre os
antagonistas, posso citar Dominique e Anemone, sobre os quais não posso
revelar muito sem estragar o fim, mas posso adiantar que servem como
contraparte a Eureka e Renton, usando o Type TheEND, um
mecha tão poderoso quanto o Type Zero. Sob o comando direto de Dewey Novak,
que serve ao conselho dos Sábios (a mais alta autoridade mundial) em
determinados momentos eles demonstram ainda mais carisma que a turma do
Gekko State.
O roteiro de Eureka seveN é impecável. Não há do que reclamar aqui, as
informações ficam claras, as revelações surpreendem, personagens novos
são adicionados no momento certo. Já o fluxo narrativo deixa um pouco a
desejar nas partes iniciais. Com a intenção de deixar o publico no
escuro, certas informações são omitidas, e o que deveria criar
curiosidade acaba irritando um pouco. Felizmente, lá pelo episódio 10 a
coisa começa a fluir de uma maneira tão agradável que você mal toma
fôlego antes de chegar no 50, que encerra a série.
Tecnicamente, a série é bem acabada, mesmo para o padrão atual. Algumas
sequências de batalha são inventivas ("à la" Samurai Champloo), mesmo
envolvendo
mechas
e aeronaves. Outras são clichês batidos, mas tão bem executados que
empolgam, e muito. Os 5 episódios finais são um show à parte, e quando
termina você pensa: "queria mais, mas se fizessem isto estragariam". A
animação é tudo que se espera do estúdio Bones e a paleta de cores
combina com o clima ameno da série, que apesar de ser séria em muitos
momentos, não é cruel com o público (como o Hideaki Anno parece adorar
ser). A trilha sonora teve uma única escolha equivocada em minha
opinião, que foi a segunda abertura do anime, mas de resto cumpre o seu
papel e, em dados momentos, desencanta.
Algumas questões mais sérias e alusivas ao nosso mundo atual são
tratadas, como a influência da mídia, intolerância religiosa, ética
médica, descuido ambiental e outras tão pertinentes quanto, mas sem
focalizar os temas muito de perto, permitindo que você reflita sem se
perder. O interessante é ver os personagens do anime encarando isso como
nós o fazemos em nosso dia-a-dia, e fazendo o que podem diante das
circunstâncias, gente como a gente. Algo que gera uma identificação
imediata.
Finalizando, a nota dada é a máxima, pois mesmo sofrendo de alguns
defeitos, as qualidades são tantas que as falhas se perdem entre elas. A
cada ano a impressão que se tem é que o número de boas séries (boas de
verdade) diminui. Eureka seveN prova que ainda tem espaço pro trabalho
autoral aliado ao entretenimento nos animes. Além disso, mesmo sendo uma
série de
mechas,
com um enredo complexo (como é comum no estilo) essa daqui facilmente
agrada a todos, tendo humor, romance, ação, reviravoltas, história e
animação de qualidade. Tudo na medida certa.